À espera do mundo

8 de março de 2020

Há algo de mágico na Fotografia que parece ter conquistado o Mundo. As primeiras tecnologias fotográficas foram produzidas na década de 1830 e, ao longo de dois séculos desde então, a câmera fotográfica passou a ser uma das ferramentas mais usadas. Apesar da proliferação desenfreada da era digital, a Fotografia mantém, até hoje, uma espécie de atração mágica inevitável.

No frenesi de acessos, comunicações e deslocamentos, o tempo escoa, falta, acaba, sufoca. Mas, como captar a vida que enredada em tais fluxos, corre em direção a um futuro incontornável? O certo é que desde a invenção da Fotografia, as “máquinas da visão” sempre se alimentaram dessa utopia moderna que consiste em aspirar ao domínio do tempo e, por conseguinte, prefigurar a sublime ambição pela eternidade.

Ora, no alvorecer do milênio, Cyro Almeida (MG, 1984) e Júlio Santos (CE, 1944) abrem uma brecha na pressa dos tempos, ousando apresentar uma obra híbrida, composta de múltiplas poéticas visuais. O encontro entre os dois nasce de um extraordinário amor pela Fotografia e pela Fotopintura, técnica particularmente difundida no Nordeste do Brasil. Numa troca crescente de técnicas e saberes entre o tradicional e o contemporâneo, os autores unem-se numa aventura arqueológica em torno da imagem, em busca de respostas pelo presente, escavando as camadas do imaginário que se foram sobrepondo ao longo da história. O mundo é pois composto de mudança[1] e, numa proposta de lutar contra o esquecimento, Cyro Almeida e Júlio Santos ousam agarrar a lentidão do tempo, em plena liberdade, tarefa que à primeira vista parece pertencer ao domínio das estrelas.

Estamos perante uma composição entre-tempos levada por autores de distintas gerações e origens que se atrevem a compor um retrato da geração Z _ nascida na era da internet _ absorvendo os seus modos de ser e estabelecendo uma ligação entre seus estilos de cores vibrantes, desejos e inquietações. A obra apresenta uma reflexão sobre a experiência de representação da juventude de Belo Horizonte, registrando os seu códigos visuais e suas complexidades sociais. Aqui o tempo procura ensejo para ser concebido não só da perspetiva funcional, pragmática, mas também em seu caráter poeticamente trágico.

Cyro Almeida fita, através da sua câmera analógica de médio formato, as poses e atitudes dos “selfies” desta juventude suspensa, enquanto Júlio Santos, mestre da Fotopintura e, um dos seus derradeiros expoentes vivos, pinta os retratos dessa geração por meio da tradicional técnica que parece ser a representação ideal da figura humana, a sublimação de um momento precioso.

Num gesto performático e provocador, Júlio Santos renova-se a óleo e pastel no seu cavalete em Fortaleza, deixando perceber a sua força em se reinventar e lutar contra o esquecimento. Cyro Almeida, maravilhado por essa fúria de viver, junta-se nessa trajetória, trazendo novas camadas ao processo, num profundo respeito pelo Retrato que aqui ganha uma tonalidade versátil e fabular.

Encontros desses são preciosos, pela sua singular capacidade de proteção, de fazer valer a importância histórica de técnicas que se viram suplantadas pela vertigem dos tempos e nos convidam a refletir sobre o lugar da Fotografia no tempo presente. Juntos, Júlio e Cyro, trazem à tona uma constelação de imagens que mesclam vários tempos, tal qual apontamentos sobre a origem da Fotografia: o tempo dos ofícios, o tempo das tecnologias, o tempo das imagens.

Composta por uma expografia que agrega fotopinturas, provas de contato e um vídeo que documenta o processo, a mostra “Deslimites da Memória” apresenta uma geração que, num grito de liberdade e experimentação, não tem medo de ousar em seus cabelos coloridos, piercings e maquiagem. A essa juventude, mesclam-se os paletós, gravatas, vestidos estampados e outras indumentárias típicas das fotopinturas no século XX. Azul, verde, amarelo, rosa, lilás: a paleta de hipóteses não tem fim e abre-se em êxtase como uma marca viva e fluída da contemporaneidade.

A técnica de pintar as fotografias, traz à luz as questões sentidas por esta geração suspensa que enfrenta, uma vez mais, um mundo cheio de questões: identidade e gênero, feminismo, racismo e religiosidade, num momento de transição entre choque e mudança, de extrema fragilidade que revelam as inevitáveis angústias que os futuros sempre trazem. Numa espécie de presságio, esses retratos mostram-nos de forma poética a singularidade da vida, a esperança e as expectativas dos novos olhares num balanço entre ficção e realidade.

Que recordações teremos dessa geração e que futuros a esperam? Olhamos estes retratos, tanto quanto somos observados por eles. Ao tropeçar nas fissuras da Fotografia e atentar contra o jogo especular das aparências, os autores lançam algumas pistas para a interpretação da vastidão do universo, rico de luz e cores que expressam a alma e o espírito poético do homem e revelam através da Fotopintura, alguns dos conceitos matriciais da humanidade. Trata-se de um lugar onde o imaginário se assume como um grande teatro da memória _ amplo e aleatório, labiríntico e metamórfico _ no qual todas as constelações são possíveis, em nome de um espaço-tempo onde a magia da captura da realidade permite um encontro entre experiência, memória e contemplação. Esse parece ser o pacto e a visão deste encontro de Júlio e Cyro: o antigo e o novo sonho da Fotografia.

[1] “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades” é um poema de Luis Vaz de Camões e é o primeiro álbum solo do cantor português José Mário Branco (1942-2019), gravado em 1971 em Paris, onde o cantor esteve exilado devido à ditadura salazarista. É um marco incontornável da música portuguesa.


Texto de Ângela Berlinde, redigido para apresentação da mostra Deslimites da memória. Cyro Almeida e Mestre Júlio Santos. Museu Mineiro. Belo Horizonte/MG, 2020.

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