Você já deve ter se deparado alguma vez com um retrato antigo, provavelmente na casa do seus avós, que despertava uma certa dúvida: isso é fotografia ou pintura? Então, tecnicamente, aqueles trabalhos são um pouco dessas duas linguagens, pois dependem de uma sobreposição de procedimentos, e, por isso, são chamados de fotopinturas. Essas se desenvolveram no Brasil, a partir dos anos 30, quando a fotografia 3×4 se popularizava, impulsionada pela exigência do registro fotográfico em documentos, a partir do governo de Getúlio Vargas (1882-1954).
Não à toa, as composições ligadas a essa vertente obedecem sempre a uma captura frontal – como ainda são feitos os cliques voltados para a produção da carteira de identidade, do passaporte, dentre outros. A formalidade fixada naqueles retratos 3×4 era, posteriormente, “amaciada” pelas mãos de artistas como o cearense Júlio Santos, 76, que é um dos últimos especialistas em fotopintura do país. Vestidos, ternos, broches, lenços eram aplicados sobre a imagem com precisão, enquanto cabelos e até a fisionomia dos retratados eram retocados com o mesmo cuidado.
Foi em busca desse saber, hoje bastante raro, que o fotógrafo mineiro Cyro Almeida, 35, estreitou laços com Santos – o mestre com quem ele assina a autoria de 56 obras apresentadas na exposição “Deslimites da Memória”, em cartaz no Museu Mineiro até 3 de maio. O primeiro encontro entre os dois aconteceu por acaso. Em 2012, Almeida estava em Belém, onde Santos foi realizar uma palestra e uma oficina.
O fascínio do fotógrafo com a expertise de Santos, ao ouvi-lo falar do seu trabalho e de sua história, foi imediato. E, ao relatar suas impressões para o palestrante, este logo fez o convite para que Almeida lhe fizesse uma visita em Fortaleza. Dois meses depois, o mineiro desembarcou na capital cearense, e dali em diante começou, entre os dois, um amizade que foi amadurecendo por meio de ligações e de visitas posteriores. Até que, em 2016, o visitante propôs uma parceria, que resulta na série inédita exibida agora em Belo Horizonte.
Almeida conta que tinha um projeto em mente, mas deu carta-branca para Santos contribuir com sua arte, seguindo suas próprias escolhas. “Desde o início, eu entendo esse trabalho como algo coletivo. Não é uma pintura do mestre Júlio em cima de uma fotografia de Cyro: são fotopinturas de Júlio e Cyro, mas com etapas em que um teve um protagonismo maior do que o outro”, pontua o fotógrafo.
Ao revisitar uma prática considerada obsoleta, Almeida teve a ideia de incorporá-la a partir dos olhos de hoje. E, assim, em vez de recorrer aos baús das famílias, ele navegou pelo Instagram. Na rede social, o fotógrafo encontrou perfis de vários jovens, o que o motivou a chamar alguns deles para performar diante de sua câmera analógica, repetindo as mesmas poses das selfies publicadas por eles na plataforma virtual.
“A maioria deles é de Belo Horizonte, exceto três irmãs que são de Araxá (cidade natal de Almeida). Depois, eu selecionei alguns negativos, ampliei as imagens em preto e branco e as levei para o mestre Júlio, que ficou responsável por finalizá-las”, detalha Almeida.
Justamente por replicar fotografias descontraídas, que se distanciam do padrão 3×4, as imagens com as quais Santos precisou trabalhar eram muito distintas daquelas a que estava habituado. “Eu recebia os retratos num envelope com uma descrição exata do que o cliente queria: ‘pintar olhos e cabelos castanhos, paletó azul marinho, botar um lenço e uma caneta no bolso, uma gravata vermelha’, fazer isso e aquilo. Quando eu recebi as imagens de Cyro, eu encontrei modelos completamente inusitados. Uns estavam com a língua pra fora, outros com piercings no rosto, e aquilo me fez repensar nas fotografias do passado e no momento das imagens feitas hoje”, relata Santos.
“Deslimites da Memória”, que tem curadoria da portuguesa Ângela Berlinde, propõe, assim, uma brincadeira com essas fronteiras. Almeida comenta que o público poderá se surpreender com a mostra, incluindo os retratados, pois eles ainda não viram os trabalhos finalizados.
“Acredito que alguns espectadores vão entrar na galeria e identificar a fotopintura. Mas poderão ter um certo embate com as obras ao perceber que as pessoas ali retratadas são muito diferentes de um padrão que eles talvez conheçam. Já os mais jovens vão se identificar de imediato, mas também é possível que estranhem a técnica, que ainda podem desconhecer”, avalia.
Originalmente publicado em O Tempo, 9 de março de 2020. Reportagem: Carlos Andrei Siquara.