Cada tempo constrói seus rituais em torno da imagem, numa interação própria entre os desejos que uma sociedade expressa e as tecnologias que estão disponíveis para acolhê-los. Se nos acomodamos demais ao nosso próprio tempo, muitos desses rituais parecem sem sentido: soam artificiais, afetados e desnecessários. Mas as imagens são por si mesmas impuras. Elas se encarregam de mostrar aos olhares mais receptivos aquilo que de cada momento sobrevive nos novos rituais.
Encarregam-se também de encontrar em cada tecnologia uma porosidade que permita colocá-las em diálogo com formas que parecem superadas. As poses e os trejeitos diante da câmera mudam, mas o esforço de produzir relatos sobre nossa existência e nossas identidades permanecem. As tecnologias avançam mas, com frequência, elas mesmas se tornam instrumentos de uma arqueologia que busca dar respostas ao presente escavando as camadas de imaginário que foram se sobrepondo ao longo da história.
Os selfies das redes sociais e as fotopinturas são experiências que surgem em tempos e contextos distantes. Mas têm em comum o esforço de abrir a imagem àquilo que um sujeito fantasia sobre si mesmo. Essas imagens são carregadas de virtualidade, não porque porque sejam menos verdadeiras do que qualquer outro retrato, mas porque são claramente o agenciamento de uma memória que se quer deixar. Em “Memória Involuntária”, esses rituais se encontram modulando linguagens, técnicas e tempos diversos.
Cyro Almeida parte de selfies publicados nas redes, uma imagem própria de uma geração que não é a sua. Convida seus autores a reencenar aquelas poses para uma câmera de médio formato, dispositivo estranho à agilidade das câmeras de celular que geraram os selfies. Em seguida, mestre Júlio dos Santos, que já havia incorporado o photoshop à sua rotina de trabalho, retoma as técnicas tradicionais da fotopintura para adicionar uma nova dose de fantasia à construção desses retratos. Não é o caso de buscar uma verdade sobre esses personagens. A imagem é um lugar de encontro em que cada sujeito deixa um pouco de si para a construção de uma memória coletiva.
Originalmente publicado em Icônica,2016 Texto: Ronaldo Entler.